sexta-feira, 9 de dezembro de 2011

O Rondante

         Ele, “casado de novo”, necessitava trabalhar numa firma mais sólida, foi na Estrada de Ferro Sorocabana que arranjou um emprego. Pertencia à Turma 33, ali entre a Chave Madeiral e o município de Caiuá. Para ganhar um dinheirinho a mais, realizava diariamente dentro do trecho de aproximadamente quatro quilômetros, do qual pertencia, uma ronda para verificação dos trilhos. Saía de casa meia hora antes da meia-noite, solitário, tinha por companheiro um cachorro vira-lata e uma lanterna que só clareava apenas um raio de dois metros à sua volta. Essa lanterna, alimentada por querosene, permitia estabelecer um sinal entre ele e o maquinista do “misto” que passava por volta da zero hora. Um vidro verde baixado na frente da luz do farolete significava que o maquinista deveria ser cauteloso ao trafegar os próximos quilômetros, pois aquele observador detectara alguma irregularidade na linha, como um animal que poderia estar caminhando sobre os trilhos, talvez.
         Quando o vidro baixado era vermelho necessitava a imediata parada da composição, pois o ronda avistara perigo iminente que poderia resultar no descarrilamento do trem. Não estando baixados os vidros coloridos, significava que a situação era de normalidade. O mesmo sistema de cores para sinalização durante o dia era feito com pequenas bandeirolas; verde e vermelha.
         Como era uma época na qual as mulas-sem-cabeça e os lobisomens “atuavam” naquelas pragas, foram muitas as situações horripilantes durante o período em que ele realizou aquele serviço.
Eram muitas as histórias de assombração naquele trecho e caminhar sobre a linha do trem naquele horário não era um bom negócio, não compensava os cinco cruzeiros ganhos por patrulha realizada. Dentre as inúmeras ocorrências, tinha aquela da mulher que era vista na beira da linha segurando um bebê no colo. Para esta ao menos havia uma explicação.
         Falavam que o velho cearense Leôncio, um dos raros parteiros do sexo masculino daqueles confins era quem “pegava todas as crianças” que vinham ao mundo. Em seus incontáveis trabalhos de parto, por
infelicidade na prática de tal mister, em virtude de complicações no procedimento, deixou uma mulher e seu bebê morrerem. Seria esta que ficava beirando a linha exibindo seu rebento aos maquinistas nas sinistras madrugadas? Também em virtude deste triste fato, nossa vítima, o amigo Zé Barbosa e outros, contavam a todos que era comum escutarem naquele trecho o choro desesperador de uma criança. Nada de concreto era constatado. Dizem que os animais vêem com mais facilidade as assombrações, as coisas do outro mundo. O nosso personagem, em meio à escuridão que por si só arrepiava, ouvia vozes humanas que pareciam de bugres (índios muito selvagens e considerados não cristãos pelos europeus), muito comuns naquela época. Recebia também o pobre passeante, chuva de pedras que inexplicavelmente caiam em seu redor.
         Ainda ele, o herói notívago, certa vez empunhando a lanterna sinalizadora em seu martírio diário, caminhava pelos trilhos quando seu cachorro estagnou-se, iniciando um latido sem fim. A direção que
mirava aquele fiel amigo era uma só, alguns metros adiante do sentido em que iam. Certamente deparou-se com algo que nunca vira antes. Por nada deste mundo seguiu em frente, apenas o latido desesperador. O
serviço não podia perecer e o ronda, que arrepiara–se, dos fios de cabelo dos dedos do pé aos cabelos da cabeça, teve que encarar a realidade, continuou sozinho naquele dia. Nos dias que se seguiram teve a incondicional companhia da esposa. Esta, escondia-se para não ser vista pelos tripulantes e passageiros do trem. Não ficaria bem perante os colegas de outros trechos saberem que aquele necessitava do apoio feminino para amenizar o seu fadário. Largou tudo e voltou a trabalhar com o Seu Augusto Alves no ramo de serraria. Eram os idos de 1953, auge da extração e escoamento de madeiras em nossa região.

Este texto foi escrito pelo meu pai Ari Florentino da Silva que é Presidente da Academia Venceslauense de Letras e Membro da Associação dos Novos Escritores do MS

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